Carta 2
Lembro-me bem de quando éramos pequenas. Uma das recordações mais remotas eras tu, de cabelo curto, e de vestido branco. Chegaste com os teus pais à aldeia, a tua mãe grávida com o teu irmão no ventre. Os teus olhos grandes claros realçavam-se na tua cara, feliz. Brincámos juntas na casa da tua avó, da minha avó, cheias de colares coloridos da minha mãe e das minhas tias. Demos a mão a subir as escadas de casa dos meus avós, que na altura pareciam quase infindáveis, eu chegava sempre cansada, mas tu tinhas uma energia e subias com uma agilidade admirável, e parecia que para ti o calor que dava o cansaço não existia. As coisas pareciam tão simples para ti. A tua mãe chegou para te buscar à noite, e tu já tinhas o vestido sujo. O teu irmão nasceu, o meu primo nasceu, e brincámos os quatro, dançamos, corremos, cantámos… A vida era tão fácil para nós…
Houve um dia que foi mesmo impossível concentrar-me na matemática. Não que fosse uma coisa que me concentrasse bem, mas com a morte da tua mãe eu não conseguia deixar de pensar em ti, e o ar saía dos meus pulmões e parecia não querer entrar mais… Naquela noite, o meu sono não foi profundo, ora acordava, ora dormia mas consciente. Um estado em que não se está bem acordado, mas também não se está totalmente a dormir. Quando isso acontece os meus olhos ficam secos, e parece que se colam às pálpebras, ficando estas perras. Tu parecias lidar tão bem com a situação que me metia medo de perder a minha própria mãe. Eu sabia que por trás do teu sorriso e das tuas brincadeiras algo se passava e estava mal. Dormimos juntas, com o saco de água quente roto da minha tia. Acordamos a rir, com a cama encharcada.
Teria muita coisa para contar e para recordar, mas tenho a certeza que te lembras tão bem quanto eu. Hoje…. Hoje és mãe, e tens apenas um ano a mais do que eu. O que te terá passado pela cabeça?? Eu sei que gostas de crianças, mas não esperava que as coisas pudessem acontecer tão rápido contigo. Apesar de uma infinidade de perguntas e de dúvidas crescerem na minha cabeça, não me cabe a mim julgar, ou fazer suposições da tua vida. Eu só quero que esse rapaz seja feliz e que tenha saúde. A única coisa que eu tenho pena é que o meu filho (se eu os tiver) não possa brincar com o teu como nós fizemos um dia. Agora que tens um rebento para criar, quando é que nos poderemos encontrar outra vez?
Já tive mais vontade de ter uma extensão minha à face da terra, mas hoje já vivi tanta coisa desde então, que nada mais faz sentido. Começo a achar, por humor, que os filhos dos outros são mais giros e mais engraçados porque não nos dão trabalho, mas por outro lado, é um pedaço de carne nosso, gerado por nós, que está ou estará ali, à nossa frente. Mudará todos os nossos instinctos, as nossas vidas, a nossa forma de pensar. Mais do que nunca daremos a nossa vida por esse alguém sem pensar duas ou sequer uma vez. Um novo tipo de amor nasce para nós, nunca antes descoberto.
O problema é que a minha personalidade e a minha forma de pensar não encaixa em certo tipo de coisas. As pessoas podem-me chamar tradicionalista, tacanha, retrógada, conservadora, whatever, mas até hoje eu não me imagino experimentar esse tipo de amor, sem antes experimentar o amor verdadeiro da paixão. De olhar para uma pessoa do sexo oposto ao meu e poder dizer com toda a certeza que aquela é a pessoa que sempre esteve destinada para mim, à qual eu sinto uma empatia tal que nada entre nós se poderá desmoronar. Muitas pessoas diriam que eu não sou realista, “Ana, nada é para sempre, tudo acaba, e tens de te sujeitar a que um dia essa pessoa te abandone porque as coisas não funcionam.” Eu digo, “fuck that.” São os meus princípios, mesmo que um dia morra sozinha, à procura do que muitas pessoas dizem ser impossível, ou pouco provável.
Por isso eu penso e divago. Se algum dia as nossas vidas se juntassem num só corpo, nós seriamos completamente felizes. Pelo menos da minha parte. Invejo-te, por teres um pessoa ao teu lado, desde à tanto tempo… e calculo que também darias tudo para ter a tua mãe contigo. Não querendo de maneira nenhuma ser depreciativa, ou que tenhas uma ideia errada de mim, que eu talvez pense que eu ou tu somos melhores que tu ou eu.
Gosto de ti, e para ti quero e desejo o melhor.
Abraços.
Etiquetas: cartas
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